Porquê incentivar carros elétricos no Brasil ainda é (infelizmente) uma má ideia

Lembro de um episodio da minha infância, quando um tio contou uma daquelas "piada-de-tio". A piada era mais ou menos assim (não lembro as palavras exatas e estou mudando um pouco o tom para torna-la mais PC):

"Um migrante nordestino veio para São Paulo fugido da seca e fica admirado com a disponibilidade de água nas cidades. Ele então compra uma torneira e volta correndo para sua cidade natal. Chegando em sua casa ele correr fixar a torneira na parede, mas quando abre o registro nada acontece e ele fica decepcionado."

Na época, minha irmã, com 4 ou 5 anos, não entende a piada e então meu tio pergunta "por que você acha que não saiu água da torneira?". Ela pensou por um momento e respondeu com um pouco de dúvida no tom de voz "Ele não prendeu direito a torneira na parede?".

Assim como minha irmã não entendia de onde vinha a água (e nem a figura do migrante no chiste do meu tio), muita gente esquece de onde vem a energia elétrica. Ela não vem da tomada, ela vem de uma rede complexa de produção-distribuição. E nossa realidade hoje é que essa rede de produção mal dá conta da demanda básica, e a rede de distribuição está sobrecarregada, o que reduz a sua eficiência.

Assim fico preocupado com a quantidade de pessoas que defende o uso de carro elétricos no Brasil, pensando se tratar de uma opção ecológica, porém esquecendo dos efeitos que irão ocorrer caso adotemos essa tecnologia já, sem a infraestrutura necessária.

Então vou aqui dar resposta a algumas das posições dos defensores dos carros elétricos (ou híbridos) e porque sou contra até que tenhamos resolvidas outras questões.

Pontos a serem considerados

Antes de entrar nos argumentos usados pelos defensores dos carros elétricos, vamos deixar claro algumas realidades:

a) O Brasil não tem energia elétrica sobrando e quando voltar a crescer vai ter, mesmo sem a "ajuda" dos carros elétricos, um déficit grande.
b) se não temos energia elétrica sobrando, temos como construir mais hidroelétricas para cobrir a demanda maior que iria surgir com carros elétricos? Infelizmente não! Praticamente todos os pontos onde havia viabilidade de geração de energia hídrica já são atualmente explorados.
c) temos perspectivas de que a energia eólica ou solar cubra essa demanda? Essas fontes de energia são ótimas promessas, precisamos investir nelas e temos grande potencial natural. Porém temos que ser realistas: as estimativas mais otimistas mostram que o seu uso no máximo vai ajudar a diminuir o déficit

Você pode argumentar que o Brasil deveria investir mais em energias renováveis, que os nossos governos são péssimos, corrupção, inação, etc, etc, etc. Nesse caso você pode parar de ler o texto por aqui, porque já divergimos de maneira irreconciliável nas nossas linhas de raciocínio. Concordo que temos todos esses problemas, mas exatamente por saber que temos esses problemas, na minha opinião, é fantasioso defender o aumento de consumo de energia elétrica (de qualquer forma que seja), considerando que esses problemas vão ser rapidamente resolvidos ou esquecendo que eles existem. O Brasil vai continuar Brasil por muito tempo.

Moral da história: falando realisticamente, a única forma de conseguirmos aumentar, hoje, a nossa oferta de energia elétrica para cobrir uma demanda por uso de carros elétricos, seria aumento o uso de termoelétricas.

Vamos então agora responder aos argumentos usados por aqueles que defendem a adoção imediata e massiva dos carros elétricos no Brasil como sendo uma ideia ecológica e viável.




Argumento 1: A nossa matriz energética é baseada principalmente em hidroelétricas

Esse argumento possui algumas variações, mas normalmente vem acompanhado de estatísticas ou infográficos sobre o fato de sermos um país com uso predominante de energia baseado em hidroelétricas.

Isso é verdade, porém não é esse o ponto. A questão é: onde vamos crescer para gerar mais energia elétrica? Resposta: termoelétricas é a única saída realista de médio e curto prazo.

Argumento 2: Os carros também são fonte de poluição igual as termoelétricas

Esse argumento leva em conta que uma usina termoelétrica é igual a um carro, ou seja, gera poluição igual e consome combustíveis da mesma maneira. O argumento normalmente termina dizendo que, igual por igual, que pelo menos a poluição seja gerada fora das cidades.

Isso nos leva a questão de eficiência energética.

N litros de combustível X (troque X pelo seu combustível preferido) gera Y watts de energia. Vamos pegar um número aleatório, só para facilitar o entendimento:

10 litros de combustível X geram 100W de energia. Vamos ver agora a eficiência dos dois processos: combustão direto no motor ou então na geração-transmissão-armazenamento nos carros elétricos

Motor a combustão

Os motores a combustão (carros convencionais) temos uma eficiência de perto de 30%, então os 100W gerados a cada 10 litros consumidos vão representar 30W uteis para mover o carro. Pronto, simples assim.

Termoelétricas

Em termoelétricas as otimizações e o uso de equipamentos maiores permitem uma maior eficiência, o que  é bom. Então os 100W gerados a cada 10 litros de combustível X vão representar até 45W de energia gerada. Ótimo! Mas ainda temos que transportar, armazenar e gastar novamente no motor elétrico.

Então dos 45W gerados 8W são perdidos na transmissão, mais 8W no armazenamento da bateria (jogar energia dentro da bateria gera perda, todos sabemos que as baterias esquentam quando são carregadas, esse energia térmica vem de algum lugar), o que significa 29W de potência disponível na bateria para cada 10l de combustível X. Um bom motor elétrico tem 90% de eficiência, o que significa que geramos efetivamente 26,1W para cada 10l consumidos.

Esses valores são aproximados e vocês podem usar a sua estatística de preferência, mas a conclusão vai ser a mesma: quanto mais passamos e repassamos a energia, menos eficiente o processo fica.

Então usar termoelétricas para cobrir o aumento de consumo de energia causado por carros elétricos vai aumentar significativamente o consumo de combustíveis e tudo de ruim causado por ele.

https://oilprice.com/Energy/Energy-General/The-Inconvenient-Truth-About-Electric-Vehicles.html

Argumento 3: carros elétricos não consomem quando estão parados e conseguem recarregar baterias nas descidas

Este é uma das principais vantagens dos carros elétricos em relação aos convencionais. Os carros convencionais gastam combustível quando estão parados e nas descidas não conseguem recuperar a energia gasta na subida. Já os carros elétricos não gastam nada quando estão parados e nas descidas conseguem recuperar parte da energia usada na subida (e ainda gastam menos a estrutura de freios nesse processo).

Realmente em situações onde o veículo opera constantemente em situação de congestionamento os carros elétricos conseguem uma grande vantagem. Os carros convencionais no máximo conseguem reduzir o gasto "apagando" alguns cilindros ou usando a técnica de desligar o motor durante as paradas.

O problema é que hoje esse ganho ainda não compensa a perda causada na geração-transmissão (principalmente na rede transmissão nacional, que está sobrecarregada e que com isso acaba tendo uma eficiência menor que nas redes de transmissão dos países mais desenvolvidos).

Argumento 4: carros híbridos não precisam ser carregados

Energia nunca se cria nem se destrói, ela se transforma. As baterias do carro hibrido são carregadas pelo motor a combustão, que vai gastar mais combustível para carrega-las. As pessoas acham que um motor a combustão, por estar rodando, carrega as baterias de graça. Não é assim. O mesmo motor, se não tivesse que carregar as baterias, gastaria menos. É igual ao ar-condicionado do carro: quando ligamos o consumo de combustível aumenta.

Em situação de vias congestionadas, os carros híbridos levam uma vantagem, já que não consomem quando estão parados. Além disso os carros híbridos conseguem reaproveitar a energia durante a descida, o que ainda tem o benefício de reduzir o desgaste dos freios. Então assim, a cada litro de combustível, os carros híbridos conseguem - muitas vezes - gastar menos (e consequentemente emitir menos poluição).

Por outro lado sempre levam uma carga maior de peso morto: se estão em modo elétrico estão "levando" 80 Kg (aproximadamente) de motor a combustão+combustível e se estão em modo combustível estão "levando" 80Kg de motor elétrico+baterias. Então em situações de longos percursos ou alta velocidade, essa vantagem deixa de existir e pode se reverter inclusive em desvantagem.

Além disso existe a discussão sobre o problema do descarte das baterias, que vai ser necessário no futuro. É igual a energia elétrica produzido pelas usinas nucleares: hoje são "quase de graça", mas no futuro vão ser um enorme problema. No entanto entrar nessa análise, para descobrir se a economia de combustível dos carros híbridos é melhor ou pior que os problemas do descarte das baterias ainda é uma discussão aberta em todo mundo.

Existem muitas sim situações em que os carros híbridos vão dar maior Km/l mensal, comparado aos veículos apenas com um motor (apenas elétrico ou apenas combustão), porém existem questões abertas sobre a "ecologicidade" a longo prazo. 

Argumento 5: EUA já tem uma frota considerável de carros elétricos

Os EUA estão literalmente "enfiando o pé na jaca": aproximadamente 80% da energia elétrica lá é gerada usando combustíveis fósseis ou usinas nucleares (60%/20%).

A energia nuclear foi pensada na década de 80 com o argumento "hoje não sabemos o que fazer com os resíduos das usinas nucleares, mas até o ano 2000 já devemos ter a solução". Estamos em 2018 e ninguém tem a mínima ideia do que fazer com as milhares de toneladas de material radiativo, material altamente perigoso e que vai continuar perigoso pelo próximos 500.000 anos (isso mesmo, eles vão ter que "cuidar com cuidado" desse material radiativo por mais meio milhão de anos, quanto vai custar isso?!).

Já a geração de energia elétrica por termoelétricas, como já viemos no Argumento 2, é trocar 6 por 5.

Argumento 6: Se tivéssemos investido em carros elétricos no passado não estaríamos nessa situação

Normalmente os defensores deste argumento lembram que Henry Ford ou Amaral Gurgel no Brasil (entre outros) tentaram investir em carros elétricos, mas por razões X, Y e Z (substituía X, Y e Z pelas suas teorias da conspiração preferidas). Esse argumento tem o tom de "o mundo fez a escolha errada e hoje estamos pagando por isso".

Na minha opinião me parece mais um caso de quem esquece que a eletricidade não vem da tomada.

Se tivéssemos adotado o modelo de veículos primariamente elétrico hoje teríamos um problema enorme de descarte/reciclagem de baterias, um consumo gigantesco de energia elétrica e estaríamos dizendo "Henry Ford e Amaral Gurgel tentarem investir em carros a gasolina, mas por razões X, Y, Z hoje estamos presos aos motores elétricos".

A grama do vizinho é sempre mais verde e galinha dele sempre bota o ovo mais amarelinho. O que não temos experiência tem apenas coisas boas, normalmente não vemos das coisas ruins que elas trariam.

Então qual a solução?

Não acho que existe solução fácil, mas também não acho que adianta apostar em ideias sem base prática. Acredito que precisamos de motores a combustão mais eficientes (vamos proibir ou taxar veículos ineficientes), precisamos de fontes de energia renováveis (mas não adiantar contar com elas antes de saber como e quando serão financiadas) e precisamos gastar menos (você que só anda de carro, já pegou um dia, um zinho só, para andar de transporte público este mês?).

Resumo

Não sou contra carros elétricos, apenas acredito que precisamos antes resolver de maneira clara e certa alguns problemas antes de podermos pensar nisso.

E você? O que você acha?









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